Vânia tocou a campainha do porteiro eletrônico e aguardou. Não demorou para ser atendida:
- Pois não?
- Apartamento 63, Denise, por favor.
- Seu nome?
- Vânia. Eu sou a mãe dela.
- Um momento, por favor.
- Obrigada.
Ficou ali, parada diante do portão de ferro, esperando pela resposta.
- Dona Vânia, a senhora vai subir?
- Não, obrigada. Peça para ela descer que eu vou aguardar aqui em abaixo mesmo.
- Um momento, por favor.
Distraiu-se com um carro que passou na rua. “Bonito! Queria ter um assim!”
- Dona Vânia, a Denise já vai descer. A senhora não gostaria de entrar e aguardar no hall?
Pensou por alguns instantes. “Por que não?”
- Está bem, eu aguardo aí dentro.
- Pois não. Um momento que vou acionar o portão automático.
O porteiro apertou o botão, acionando o motor que abria o portão de entrada. Ela aguardou por uns instantes até que ele abrisse bastante, entrou, parou diante do segundo portão. Depois que o primeiro fechou, aguardou o segundo se abrir e entrou no jardim que ficava na frente do edifício. Acenou para o porteiro “tão educado, nem parece porteiro!”, caminhou até o hall de entrada.
Havia ali uma pequena sala com dois sofás, uma mesinha central e um tapete sob a mesinha. Piso frio, de granito, acompanhando o estilo do resto do prédio. Dirigiu-se a um dos sofás e largou o corpo, confortavelmente. “Ah, que delícia isso aqui!”
Ficou ali, olhando para os quadros que enfeitavam as paredes da sala, tudo de muito bom gosto. Começou a pensar sobre os últimos anos, a separação, recomeçar a vida, viver sozinha, ou melhor, com uma aborrecente dentro de casa, fazendo ping-pong entre as casas do pai e da mãe.
Pelo jeito, ele estava bem de vida. O prédio era bonito, de bom nível, não deveria ser muito barato para morar ali. “De quanto será o condomínio aqui?” – se perguntou. “Uns quatrocentos e cinqüenta, quinhentos? Se bem que síndico não paga. Belo golpe deu aquele safado!”
Denise demorava para descer, mas o conforto do sofá acabara com sua pressa. Estava cansada, era sexta-feira e aquele repouso estava lhe trazendo uma ótima sensação. Deixou o corpo escorregar para poder apoiar a cabeça no encosto do sofá. Fechou os olhos, teve vontade de dormir. Uma leve soneca, só para despistar o sono. Resistiu à tentação, não pegava bem alguém dormir no hall de entrada de um prédio como aquele.
“Jorge de síndico! Quem diria? Deve ter sido só para não pagar condomínio. Malandro!”. Começou a relembrar as passagens vividas a dois, os bons momentos, as brigas, a separação. Gostava dele, chamava de safado mas com uma conotação positiva, não queria significar algo ruim. “É, safado talvez não seja o melhor termo, as pessoas sempre vão entender de forma pejorativa. Malandro é melhor: meu eterno malandro!”. Abriu um sorriso no rosto. Ainda tinha um bom apreço por ele, talvez pelo efeito positivo da distância, que eliminava o desgaste do convívio e trazia boas lembranças dos tempos em que dividiram o mesmo teto.
“Ele sempre foi elegante, tinha muito charme. Foi assim que me pegou de jeito, aquele pilantra! Ah, como foi difícil se fazer de difícil para aquele homem! Eu olhava, babava, fingia que não era comigo e ele ali, me cantando, jogando papo em cima de papo e esbanjando charme. Quase perdi de tanto querer fazer doce: minha “amiga” caiu matando em cima dele. Mas aí, ah, aí não deixei barato. Lembro até hoje, que loucura: ele me ligou para bater papo, estava meio frio comigo. Também, pudera, eu não dava uma brecha, acho que ele estava cansando. Quando vi que iria perder a parada, bateu o desespero. Dei um jeito de fazer cair no assunto de cinema, ele acabou perguntando se eu queria pegar um. Topei na hora, marcamos, ai, meu Deus, eu coloquei aquela mini-saia escandalosa, onde eu estava com a cabeça? Que bandeira! Ele percebeu na hora que me viu: entreguei o ouro pro bandido! E o desgraçado aproveitou cada grama do ouro que eu dei pra ele de bandeja. Como ele abusou, pilantra! Mas valeu a pena!”.
- Oi, mãe, tá viajando? – interrompeu Denise.
- An, ah, é você? É, tava aqui concentrada, pensando em algumas coisas.
- Coisas boas, não?
- Por que você tá perguntando isso? – estranhou.
- Pela sua cara. Tava com uma feição tão alegre ... nem parecia você! – soltou, sarcástica.
- Já vai começar?
- Tá bom, desculpe. Mas a cara tava legal mesmo.
- E esse moço aí é o ....
- Pepe ... meu namorado.
- Ah, você é o tal do Pepê! – falou, enquanto media o rapaz de cima até em baixo.
- Pé-pe, não é Pepê, mãe! E ele não é o tal do, é só o Pepe.
- Sei – respondeu, seca.
Pepe parecia não estar nem aí, motivo pelo qual talvez irritasse ainda mais a sua “sogra”.
- Oi, Dona!
- Eu tenho nome, moleque!
- Ele não é moleque, mãe. E tem nome, também.
- E eu não sou Dona, madamezinha! – aumentando o tom de voz.
- Fica fria, Dona, tá tudo em paz.
Vânia estava irritada. Levantou-se, passou batida pelos dois.
- Vamos logo, que eu tenho mais o que fazer.
- Se é um sacrifício ter que me pegar, então nem precisava ter vindo. Pode me dar um passe que eu vou de ônibus.
- Escuta aqui, sua fedelha: você me faz sair de casa, pegar esse trânsito caótico só para vir te buscar de volta, me aparece com esse projeto de hyppie versão século vinte e um, e agora vem com essa que não precisava. Não quer vir, não venha. Volta pra casa a pé, que eu não vou dar passe pra ninguém.
- Você só sabe reclamar, reclama de tudo! Eu mal cheguei e você já veio com suas neuroses pra cima de mim, metendo o pau em tudo que eu faço. Você nem parece minha mãe, eu devo ter sido abandonada na porta da tua casa e você se arrepende até hoje de ter ficado comigo!
- Ah, não, crise de adolescente na sexta eu não agüento! Quer saber de uma coisa: volta lá pra cima e pede pro teu paizinho te levar. Eu tô fora! Tchau.
Vânia pegou a bolsa que tinha esquecido sobre o sofá e dirigiu-se à porta de entrada do hall.
- Mãe.
Ela fingiu que não escutou e continuou andando.
- Ô mãe, tô falando com você! Tá surda, por acaso!
Vânia parou diante da porta, colocou as mãos na cintura, virou-se e perguntou:
- O que é que foi agora, Denise?
- O papai não está.
Ela arregalou os olhos.
- O QUE?
- É, isso que você ouviu. Não usou cotonete hoje, não?
Pepe colocou a mão sobre o braço da namorada, sinalizando para ela pegar leve.
- E você não se mete, moleque!
- Ele não é moleque, já te falei! – gritou com a mãe.
- E eu posso saber o que o casalzinho estava fazendo sozinho no apartamento daquele irresponsável do seu pai?
- Meu pai não é irresponsável. E se ele não está aqui é por que tem coisas pra fazer. Além disso, eu tenho a chave do apartamento, não dependo do meu pai para entrar e sair na minha casa ...
- Sua casa? Ah, essa é boa!
- Minha casa, sim senhora. Meu pai já falou que o que é dele é meu também.
- Era só o que me faltava!
Ficou olhando para a filha, com uma expressão irônica no rosto.
- Deixa pra lá, não vou nem entrar no mérito. E vamos parar de enrolar e respondendo logo ao que eu te perguntei: o que é que os dois faziam sozinhos lá em cima?
- A gente tava dando uma trepadinha, Dona. Sabe, de vez em quando é bom, ajuda as pessoas a relaxarem um pouco.
Vânia ficou irada. Denise começou a rir.
- Seu... seu... mas que petulância. Escuta aqui, moleque, você me respeita ...
- Eu respeito quem me respeita, Dona. A senhora tá sentando a lenha desde que me viu, não me cumprimentou, não respondeu ao meu cumprimento ... eu tô até sendo muito educado com a senhora, Dona.
- E para de me chamar de dona ... – gritou.
- Se a senhora se apresentasse ...
Um morador desceu até o hall. Parou diante dos três, interrompeu a discussão.
- Desculpe a intromissão, mas posso saber o que se passa aqui?
- E eu posso saber quem é o senhor, por acaso? – indagou Vânia.
- Por acaso, eu sou o sub-síndico do condomínio. Recebi um telefonema de um morador se queixando que estava tendo um tumulto no térreo e vim verificar. E a senhora, quem é?
- Eu sou a mãe dessa criatura desnaturada, filha de um pai irresponsável que entrega para a filha a chave do próprio apartamento ...
- Bem, minha senhora, seria meio complicado que ele emprestasse a chave de outro apartamento que não o dele – ironizou.
- Parece que só tem engraçadinho aqui nesse prédio. Quero ver quando eu chamar o juizado de menores e mostrar que isso aqui não passa de um local destinado ao encontro às escondidas para prática de atos impróprios de menores de idade.
- A senhora está passando bem? – retrucou o sub.
- O que o senhor está querendo insinuar? – replicou, totalmente fora de si.
- Minha senhora, por favor, vamos sentar e conversar de uma forma civilizada.
- Eu vou sentar porra nenhuma!
Denise não sabia onde enfiar a cara.
- Mãe, pelo amor de Deus, não me faz passar mais vexame. Senta e se acalma.
- Ah, agora vem você também. Que é isso, um complô?
- Minha senhora, por favor ...
- E não me venha com esse papo de minha senhora, porque eu sei muito bem o que ...
- QUER FECHAR ESSA MATRACA, CACETE! – berrou o sub.
Vânia tomou um susto. Mas parou de falar.
- Me desculpe o berro, mas é que a senhora não parava ... – tentando ser polido.
Ela acalmou-se um pouco. Ele dirigiu-se até ela, calmamente, estendeu a mão, pedindo a dela. Trouxe-a até o sofá, sentaram-se.
- Como se chama sua mãe?
- Vânia.
- Posso chamá-la só de Vânia, minha senhora? – falou calmamente.
Ela concordou com a cabeça.
- Está mais calma agora?
- Já estou melhor.
- Bem, Vânia, desculpe me intrometer na sua vida, mas eu acho que antes de acusar alguém a gente precisa ter certeza do que fala, para não ser, no mínimo, injusto.
- É que essa menina me tira do sério!
- Eu! – exclamou Denise.
- Por favor, Denise, deixa eu conversar com a sua mãe.
- Tá bom, eu fico no meu canto.
- Obrigado. Como eu ia dizendo, é preciso tomar cuidado com certas insinuações. O Pepe mora aqui no condomínio também e provavelmente eles não estavam sozinhos no apartamento do Jorge. Ela deve tê-lo chamado para se despedir, quiçá para apresentá-lo a você.
Vânia riu.
- O que foi?
- Faz um século que eu não ouço alguém falar “quiçá”.
Pepe e Denise também estavam rindo. Aquilo ajudou a descontrair um pouco o ambiente pesado.
- Pode ser, pode ser – divagou Vânia. – Ah, essa maldita fase de adolescência, está me deixando maluca.
Denise olhava pra mãe. Com os olhos, apontava discretamente na direção do namorado. Vânia entendeu e aceitou a deixa da filha.
- Pepe, desculpe pela forma como te tratei. Acho que fui muito preconceituosa.
- Tem nada não, Dona ... Vânia.
E riu.
- Menino ...
- Bom, espero que tudo esteja bem agora.
- Vamo embora, mãe? Ou vou ter que ir de bumba?
- Não, filhinha pentelha da mamãe, você vai comigo.
Denise deu um abraço na mãe, fizeram as pazes. Deu um beijo no namorado, discretamente, para não criar mais problemas, despediu-se do sub, agradecida. Saíram do prédio, foram até o carro, estacionado logo adiante, entraram e se puseram a caminho de casa.
- - -
- Está boa a lagosta?
- Hm, deliciosa. Você nunca me levou para comer lagosta quando a gente era casado!
- Ah, então foi por isso que nós nos separamos? – brincou.
- Claro que não, seu bobo! Não sei ao certo por que foi, acho que não houve um fato assim marcante.
- É, acho que não.
Continuaram comendo.
- Você me dá licença? – ele pediu. – Preciso ir ao toalete.
- Claro, à vontade.
Jorge levantou-se e foi em direção ao toalete. Na realidade, fora apenas um despiste. Chegando lá, pegou o celular e ligou para a filha.
- Alo!
- Oi, De, sou eu. Tudo em paz aí?
- Tudo, pai.
- Estão se comportando?
- Estamos, melhor do você pensa – gracejou. – E aí? Acalmou a fera?
- Tô tentando. A lagosta já está sendo meio caminho.
- É, mas eu acho que o problema da mamãe é mais embaixo!
- Comporte-se, menina. Respeite sua mãe!
- Ah, pai, faz um esforço, tira o atraso dela, vai?
- Denise, mais uma dessas e eu tiro tua chave por um mês!
- Epa, chantagem não! Aí é sacanagem, pai!
- Sacanagem é ficar cafetinando a própria mãe, mocinha!
- Mas é para o bem dela, pai. – dando risada.
- Tá bom, então eu levo ela pra cama, capricho ao máximo, ela descobre que ainda me ama e a gente volta a morar todo mundo junto, topa?
- Morar junto, de novo? Todos os dias, sem ter casa do pai pra escapar?
- Que tal?
- Pensando bem, acho que a lagosta garante uma folguinha por algum tempo! Mas dá um reforço na sobremesa, por via das dúvidas.